RED-S: O overtraining da Nutrição!
Em 2014, o Comitê Olímpico Internacional publicou uma declaração de consenso intitulada “Além da Tríade da Mulher Atleta: Deficiência Relativa de Energia no Esporte (RED-S)”.
A síndrome de RED-S refere-se ao “funcionamento fisiológico prejudicado causado por deficiência relativa de energia e inclui, mas não se limita a, deficiências da taxa metabólica, função menstrual, saúde óssea, imunidade, síntese proteica e saúde cardiovascular”. A causa desta síndrome é a baixa disponibilidade de energia (BDE), e substituiu o termo anterior de Tríade da Mulher Atleta (TMA), pois as pesquisas observaram que os efeitos negativos da deficiência nutricional junto ao treinamento afetava também os homens, e ainda abrangia aspectos negativos de saúde além da função sexual e saúde óssea (2 sintomas principais do conceito da TMA). [1]
Essa síndrome pode ser chamada de “Overtraining da Alimentação” pois os sintomas e complicações das duas condições são muito parecidos. O “overtraining” é definido como “um acúmulo de estresse de treino ou estresse não relacionado ao treinamento resultando em diminuição de longo prazo na capacidade de desempenho”. E particularmente no “estresse não relacionado ao treinamento”, entra a nutrição. De fato, os estudos sugerem que a diminuição da disponibilidade de energia (calorias) e carboidrato pode realmente ser um fator de confusão quando a sobrecarga de treinamento/Overtraining são analisados, resultando em diagnósticos errôneos de sobrecarga de treinamento/Overtraining, em vez de RED-S. Isso significa que muitos dos diagnósticos de “Overtraining” não são necessariamente pela quantidade de treinamento, mas sim pela alimentação insuficiente que acompanha os períodos de treino intenso (falta de compensação das necessidades energéticas). [2]
CÁLCULO
A baixa disponibilidade de energia (BDE), que sustenta o conceito de RED-S, é uma incompatibilidade entre a ingestão de energia de um atleta (dieta) e a energia gasta no exercício, deixando energia inadequada para suportar as funções exigidas pelo corpo para manter a saúde e o desempenho ideais.
A disponibilidade de energia é medida dessa forma:
Disponibilidade de Energia (DE) = Consumo de Energia (IE) (kcal) – Gasto de Energia de Exercício (EEE) (kcal) / Massa Livre de Gordura (FFM) (kg)
Ensaios laboratoriais rigorosamente controlados em mulheres (já que o conceito da síndrome provém de um conjunto de sintomas antes relatado em mulheres, mas que agora envolve outros aspectos e também o homem) mostraram que a DE ideal para uma função fisiológica saudável e boa performance é cerca de 45 kcal/kg de FFM/dia. Enquanto isso, muitos dos sistemas corporais são perturbados em uma DE <30 kcal/kg FFM/dia (Alerta de Alimentação Insuficiente!) [1]
Corroborando a esses números, um estudo de revisão [3] sobre a baixa disponibilidade de energia em fisiculturistas homens naturais (sem uso de hormônios) conclui que, apesar das poucas pesquisas e limitações metodológicas, uma DE prolongada menor que 25 kcal/kg FFM/ dia pode ser patológica para os homens, com efeitos negativos nos níveis hormonais, psicológicos, massa muscular e no sistema cardiovascular – especialmente quando se aproxima dos limites extremos de percentual de gordura.
Deve-se notar que esses não são valores de corte, já que há muita variação no resultado dos estudos. Essa variação se dá pela dificuldade e falta de padronização dos métodos de medição (da composição corporal e da energia consumida e gasta), mas também fatores dietéticos (como fibras, fracionamento alimentar) que podem influenciar no processo, boa motivação e conformidade do atleta, equipamento e expertise do avaliador, etc. Apesar disso, esses valores são importantes para criar um alerta e evitar uma possível deficiência no consumo de energia.
E quais são os problemas relacionados à baixa ingestão de energia ?
Endócrinos
Pode haver uma disfunção do eixo hipotálamo-pituitária-gonadal, implicando em queda da função sexual e hormônios (principalmente testosterona no homem), alterações na função tireoidiana, desregulação dos hormônios de controle de apetite e fome, resistência ao GH, queda de insulina e IGF-1 e aumento do cortisol.
Função Menstrual
Os efeitos do LEA nos hormônios reprodutivos e na função menstrual em atletas do sexo feminino foram bem descritos (como eu disse a definição de RED-S provém da tríade da mulher atleta). As evidências atuais suportam uma interrupção da pulsatilidade do hormônio liberador de gonadotropina (GnRH) no hipotálamo, seguida por alterações da liberação de LH e FSH da hipófise e diminuição dos níveis de estradiol e progesterona; Estas modificações podem levar à irregularidades do ciclo menstrual, como oligomenorreia e amenorreia.
Saúde Óssea
A baixa disponibilidade de energia leva a um comprometimento da saúde óssea (baixa densidade mineral óssea, arquitetura óssea alterada) e maior risco de lesões.
Taxa Metabólica
A perda de peso normalmente relacionada à síndrome, mas também alterações hormonais, levam a queda da taxa metabólica de repouso.
Hematológicos
O ferro é essencial para a hematopoiese e subsequente capacidade de transporte de oxigênio. A baixa disponibilidade de energia e deficiência de ferro é correlacionada com disfunção hematológica, incluindo ferritina baixa e anemia. Por outro lado, e de forma inversa, a deficiência primária de ferro pode causar diminuição do apetite, alterações metabólicas e hormonais, que também podem predispor à síndrome.
Crescimento e Desenvolvimento
A resistência ao GH e diminuição de IGF-1 pode levar a problemas nesse sentido. O retardo de crescimento foi relatado em vários estudos de adolescentes com anorexia nervosa grave, mostrando a importância da alimentação para o desenvolvimento adequado.
Cardiovasculares
A aterosclerose precoce pode estar associada ao hipoestrogenismo e à amenorreia hipotalâmica funcional nas mulheres. Disfunção endotelial e perfis lipídicos desfavoráveis foram relatados em atletas amenorreicas. Em um estudo, atletas amenorreicas demonstraram frequências cardíacas e pressão arterial sistólica mais baixas em comparação com atletas eumenorreicas. No estado LEA mais grave da anorexia nervosa, podem ocorrer alterações cardiovasculares significativas, incluindo anormalidades valvulares, derrame pericárdico, bradicardia grave, hipotensão e arritmias.
Gastrointestinais
A LEA grave influencia negativamente todo o trato gastrointestinal, como função esfincteriana alterada, esvaziamento gástrico retardado, constipação e aumento do tempo de trânsito intestinal.
Psicológicos
Problemas psicológicos podem preceder ou ser causados por LEA, na medidade que demonstrou ter correlações negativas com vários aspectos do bem-estar psicológico (insegurança social, depressão, dificuldade de manejo do estresse, etc). Estudos de fisiculturistas masculinos indicam que uma EA prolongada de aproximadamente 20-25 kcal/kg FFM/dia, como visto no estágio final de dietas de competição, pode ser patológico e ter efeitos psicológicos negativos para os homens. Os padrões de dieta restritiva observados resultaram em redução da massa muscular e perda de força, com relatos de disfunção endócrina e distúrbios do humor naqueles atletas com medidas de composição corporal de aproximadamente 4% de gordura corporal total.
Transtornos Alimentares
Transtornos alimentares (compulsão alimentar, bulimia, anorexia) são mais prevalentes entre atletas do sexo feminino e masculino em esportes sensíveis e dependentes do peso em comparação com atletas que representam esportes em que a magreza é uma variável de desempenho menos importante. O desejo de ser mais magro para melhorar o desempenho parece predizer esses distúrbios e o risco aumenta quando a relação treinador-atleta é caracterizada por alto conflito e baixo apoio.
Performance Física
A LEA persistente pode prejudicar o desempenho esportivo através de muitos mecanismos indiretos diferentes (por exemplo, recuperação prejudicada levando à redução prematura da capacidade física, psicológica e mental e comprometimento da massa e função muscular ideal). De fato, a LEA compromete inúmeros processos-chave, como armazenamento de glicogênio e síntese proteica, ou impedindo o treinamento consistente e de alta qualidade devido ao aumento do risco de lesões e doenças.
PREVENÇÃO
A prevenção do RED-S deve ser baseada principalmente na conscientização e monitoramento. Foi demonstrado que o prognóstico do RED-S está ligado à duração da doença/disfunção e, portanto, o reconhecimento precoce (conscientização) e a intervenção precoce, quando os sintomas ainda são menores, são muito importantes.
Para o primeiro objetivo, médicos, treinadores, fisioterapeutas e treinadores têm de ser alertados sobre os componentes da síndrome e como identificá-la. Com relação aos atletas, a estratégia também é educacional, que visa alertar sobre a prevalência e o perigo da alimentação inadequada, por profissionais de saúde, treinadores, professores, atletas e pais. Além disso, programas eficazes de prevenção de transtornos alimentares devem ser multiprofissionais, interativos e direcionados a atletas e equipe técnica.
TRATAMENTO
O tratamento, assim como a prevenção, visa aumentar a disponibilidade de energia em atletas de risco (há algumas ferramentas que são utilizadas para a triagem desses indivíduos, mas nenhuma validada até o momento) e também o tratamento de transtornos alimentares.
Se o LEA for devido a uma alimentação insuficiente não intencional, então uma simples educação nutricional pode ser suficiente. Independentemente da gravidade da patologia alimentar, recomenda-se o envolvimento precoce de um especialista (por exemplo, nutricionista esportivo) para aprimorar as práticas nutricionais do atleta. O tratamento envolve tipicamente o aumento da ingestão alimentar de forma individualizada e periodizada, mas também pode incluir suplementação de nutrientes e diminuição da atividade física.
Por outro lado, se a LEA for causada por transtornos alimentares, o tratamento envolve uma equipe multidisciplinar, incluindo suporte médico, dietético e de saúde mental, e portanto tratamento medicamentoso, nutricional e psicológico. Como muitos pacientes com transtornos alimentares veem seus distúrbios como propositais e necessários, a motivação para se recuperar também é um fator crítico no tratamento.
Mountjoy M, Sundgot-Borgen JK, Burke LM, et al. IOC consensus statement on relative energy deficiency in sport (RED-S): 2018 update. Br J Sports Med. 2018;52(11):687-697. doi:10.1136/bjsports-2018-099193
Stellingwerff, T., Heikura, I. A., Meeusen, R., Bermon, S., Seiler, S., Mountjoy, M. L., & Burke, L. M. (2021). Overtraining Syndrome (OTS) and Relative Energy Deficiency in Sport (RED-S): Shared Pathways, Symptoms and Complexities. Sports Medicine. doi:10.1007/s40279-021-01491-0
Fagerberg P. Negative Consequences of Low Energy Availability in Natural Male Bodybuilding: A Review. Int J Sport Nutr Exerc Metab. 2018;28(4):385-402. doi:10.1123/ijsnem.2016-0332
Ruiz-Castellano C, Espinar S, Contreras C, Mata F, Aragon AA, Martínez-Sanz JM. Achieving an Optimal Fat Loss Phase in Resistance-Trained Athletes: A Narrative Review. Nutrients. 2021;13(9):3255. Published 2021 Sep 18. doi:10.3390/nu13093255
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